A chave ética, ideológica e estética para entender a vida, a poética e a obra de Marcelo Yuka parece estar no célebre segundo verso de “A Minha Alma”, canção maior do lendário disco do Rappa de 1999 “Lado B, Lado A”, que, aliás, acabou de ser escolhido com um dos grandes discos de 1999: “Paz sem voz/não é paz, é medo”.
Jogar a luz do questionamento, da denúncia, da poesia e da inteligência sobre qualquer paz suposta que, em verdade, silenciosamente pudesse encobrir a violência, a desigualdade social, o racismo e a iniquidade econômica foi a tarefa artística fundamental de Yuka – da qual lamentavelmente nos despedimos na última sexta-feira, com o anuncio de seu falecimento precoce.
Dizer que a partida de Marcelo Yuka acontece no momento que o país mais necessita desse tipo de norte simbólico e discursivo é uma triste e perpétua obviedade sobre o Brasil: jamais houve um momento em que um artista de tal estirpe não fosse necessário.
Yuka era não só imensamente talentoso como um artista efetivamente comprometido com o sentido de sua mensagem, que jamais colocou exigências comerciais à frente da verdade de sua própria trajetória.
Todo artista é um ente político, e Yuka entendia tal máxima como a parte mais concreta e objetiva de seu trabalho como compositor, poeta, músico e cantor. Tudo que criou, seja como principal compositor do Rappa, seja sozinho na carreira que construiu após sair da banda, parecia procurar efetivamente alterar a dura e injusta realidade ao nosso redor.
Há na geração que renovou a música brasileira nos anos 1990, através de nomes como Racionais MCs, Chico Science & Nação Zumbi, Planet Hemp e O Rappa, uma afirmação de vozes periféricas como um novo olhar sobre a realidade política e estética de então.
Um dos caminhos mais fortes e claros para se entender tal levante é justamente a obra de Yuka, especialmente nos discos Rappa Mundi e Lado B, Lado A.
Junto de Chico Science, Marcelo D2 e Mano Brown, a pena de Yuka foi capaz de significar não só o sinistro cenário social e econômico que o país atravessava naquela década, como de afirmar que toda e qualquer solução teria de partir da voz – e da paz, sem medo – das periferias.
Era com e a partir da voz dos mais pobres que a mudança teria de vir para ser realmente uma mudança – como ainda é.
E o posicionamento de Yuka foi claro sempre: mesmo após ser alvejado por tiros de um assalto que o deixariam paraplégico em 2000, ele se afirmou ainda mais como um ativista dos direitos humanos, contra a violência e as armas – e sem ódio.
Chocando a sede de vingança que é tratada como justiça, tão frequentemente no nosso país. Logo após o incidente, Yuka fez questão de apontar para outro caminho: a justiça social.
Vale cada vez mais assistir a imensa entrevista de Yuka ao Fantástico quase uma década atrás:
Em um momento em que levianamente políticos decidem por facilitar a circulação de armas em favor dos próprios bolsos em um dos países mais violentos do mundo, o silêncio literal da voz de Yuka com sua morte deve ser a medida inversa do alto volume em que suas letras e mensagens precisam agora soar.
Trabalhou ativamente em projetos sociais ao longo de toda a vida, pela educação, cultura e justiça social, tendo de certa forma sua história como um combustível afirmativo de sua luta e de seu ativismo.
A arte e o ativismo vinham antes do dinheiro; o desejo de mudança, em especial dos menos favorecidos, foi o verdadeiro norte.
Nesse sentido ecoa ainda mais alto o triunfo comercial de um disco como “Lado B, Lado A”, que não se intimida em seu discurso crítico e engajado e que, também pela qualidade das canções, dos arranjos e da produção, conseguiu alcançar o grande público, tornando-se um verdadeiro documento de época (em feito similar ao realizado por “Da Lama Ao Caos”, de Chico Science, e “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais).
Pois se o Brasil insiste em seu impulso de saltar no abismo do racismo, da violência e da desigualdade – e todo camburão segue tendo um pouco de navio negreiro – é também pela voz dos menos favorecidos que esse suicídio pode ser um pouco revertido.
Em nome do amor – sentimento que o artista reafirmou após os tiros, como forma de inteligência revolucionária –, Yuka nos mostrou que, seja qual for a intensidade da curva que a vida reserva, somente com consciência social, política, justiça e também afeto é possível enxergar, por entre os prédios enormes, o que sobrou do céu.
Valeu a pena, Yuka. Você é um dos responsáveis por milhares de pescadores de ilusão no Brasil.