Como a maior festa popular do país, o carnaval é naturalmente visto como espelho e metáfora das duras realidades sociais e políticas do Brasil. Não é por acaso, portanto, que tantos pensadores partam da festa para pensar as singularidades e profundidades da identidade brasileira. Tendo muitas de suas origens enraizadas na cultura africana e negra, e acontecendo em um país de tradição racista e escravocrata como o Brasil, pensar o carnaval separado da política é impossível. Racismo, exploração, escravidão, desigualdade e luta - todos esses são temas necessariamente presentes, direta ou indiretamente, nos carnavais e desfiles.
Desde seu início a festa já foi muitas vezes perseguida, censurada, reprimida, adiada, até cancelada - mas nunca foi vencida. E o mesmo já ocorreu em sua mais celebrada e reconhecida manifestação: o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Se o desfile reúne agremiações, profissionais e participantes oriundos das favelas cariocas, da mesma forma imaginar que a festa poderia - ou deveria - se desligar da realidade política do país é um pensamento ingênuo ou autoritário. A realidade é que os desfiles, ao longo das décadas, sempre foram marcados por importantes, comoventes e corajosos momentos de resistência política e denúncia por parta das escolas - em cenas históricas e inesquecíveis.
Desfile antes da criação do Sambódromo, no asfalto da Av. Rio Branco, no centro do Rio
Desde o início as escolas também foram perseguidas pelas elites e pelo poder político. Dos anos 1930 em diante a perseguição diminuiu, mas os temas dos desfiles passaram a ser obrigatoriamente nacionalistas. Nos anos 1960 as escolas começam enfim a driblar as exigências temáticas - e desde então, com variações entre momentos mais alienados ou mais politizados, as críticas sociais e políticas passaram a ser parte inexorável dos desfiles. Carnaval, afinal, é festa e delírio, mas não é suspensão da realidade - é também resistência e luta.
A Passarela Professor Darcy Ribeiro, nome oficial do Sambódromo
Como 2018 foi um desfile incrivelmente político (e incrível), em um momento de tanta suspensão, ameaça e crise no país, nada mais justo do que homenagearmos essa força da festa, separando os 10 momentos mais politizados da história dos desfiles.
Pode parecer inacreditável (e de fato é), mas até 1960 a história dos negros e da resistência à escravidão jamais tinha sido contada em um desfile de escola de samba. Tal revolução foi realizada pelo grande carnavalesco Fernando Pamplona, que levou a história de Zumbi dos Palmares e do mais importante quilombo das Américas para ser contada pelo Salgueiro, em 1960. No lugar do alienado e alienante luxo costumeiro, muitos componentes pela primeira vez cruzavam um desfile vestidos de escravos. Os jurados tentaram dar o título à Portela, mas a pressão foi tão grande que acabaram obrigados a dividir o campeonato entre as 5 primeiras escolas - e assim, com muita luta e justiça, o Salgueiro conquistou seu primeiro título e seu lugar na história.
A Império Serrano em 1966
Como característica nacional do Brasil, o racismo e o medo que imperou nas elites desde a tardia abolição da escravatura colocou também as afirmações culturais negras marginalizadas e perseguidas. Assim, por muitos anos falar em candomblé ou orixás era proibido em um desfile. A primeira vez que um orixá foi citado em um samba-enredo foi somente em 1966, mais de 30 anos depois dos primeiros desfiles, como um gesto corajoso por parte das escolas Império Serrano e São Clemente - que vinham com enredos homenageando a Bahia, e citaram Iemanjá.
Antiga bandeira da São Clemente
Desfile da Império em 1969
Se em 1967 o Salgueiro já havia desafiado a ditadura, que ainda não havia entrado em sua fase mais sombria, com o enredo A História da Liberdade no Brasil (cujo os ensaios foram acompanhados por agentes do DOPS), o Império Serrano, que tem a rebeldia em seu DNA, foi ainda mais longe em 1969. Poucos meses após o decreto do AI-5 (que justamente empurraria o país para o buraco sem fundo das torturas, mortes e da corrupção da fase mais autoritária e terrível da ditadura), a escola saiu com o enredo Heróis da Liberdade, numa clara posição crítica ao regime. Por isso o samba precisou ser alterado - a palavra "revolução" teve de ser trocada, por exemplo, por "evolução". O samba de Silas de Oliveira, Mano Décio e Manoel Ferreira tornou-se um hino de celebração à liberdade e de homenagem a outros sambistas.
A década de 1970 foi especialmente um período pouco politizado dos desfiles - era natural, afinal o AI-5, as perseguições, torturas e mortes reinavam no país. Assim, somente na década de 1980, com a reabertura e o fim do regime, é que as críticas puderam voltar.
O Abre-alas da Unidos da Tijuca em 1981
No segundo ano de desfile do grande carnavalesco Renato Lage, a Unidos da Tijuca homenageou o livro "Manuscrito Holandês", de Manoel Cavalcanti Proença. A história da luta do herói caboclo Mitavaí contra o terrível Macobeba, porém, tornou-se metáfora para falar do povo oprimido e pobre, da repressão política e da luta desse povo. Nesse inicio da década de 1980 a abertura já havia começado, mas a ditadura ainda não havia chegado ao fim, e Macobeba, no desfile, era visto como o dinheiro, o poder, o regime. O verso final do samba, que lê "Maldito bicho/ se me ouviu/ e não gostou do meu samba/ vai pra longe do Brasil" era invariavelmente substituído por um sonoro palavrão pelo público na avenida.
O carnavalesco Joãosinho Trinta se tornaria um dos grandes nomes da história dos carnavais com o enredo Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia, em um dos mais belos, icônicos e politizados momentos da história dos desfiles. A crise econômica e política era absoluta no país em 1989, e o carnavalesco decidiu não só abrir mão de seu luxo peculiar, como colocar um Cristo Redentor vestido de mendigo, rodeado também de mendigos, em meio à miséria para desfilar. A arquidiocese do Rio de Janeiro recorreu à justiça para proibir o Cristo mendigo de Joãosinho Trinta e, para resistir ao conservadorismo e à censura religiosa, o carnavalesco decidiu que seu Cristo sairia mesmo assim - porém coberto por um saco preto (como um saco de lixo), com uma placa em que se lia: "Mesmo proibido, rogai por nós". A Beija-flor não ganhou o título daquele ano, mas é esse o desfile que a história lembrará, como talvez o mais icônico momento político de todos os desfiles.
O sociólogo Betinho durante o desfile da Império em sua homenagem
Como já dissemos, desafiar o establishment e o poder é força fundamental da Império Serrano, e em 1996, em um momento especialmente difícil (como o atual) para a população mais pobre e os trabalhadores brasileiros, a escola decidiu trazer como enredo o grande sociólogo Betinho. As políticas econômicas do governo FHC, que afetavam direitos trabalhistas e a fome e da desigualdade de renda brasileira eram a pauta do dia, e Betinho, oriundo da luta contra o regime militar, representava justamente a luta contra a fome no país. "Democracia e miséria são incompatíveis", dizia Betinho, denunciando também a falta de compromisso do então governo com as classes mais pobres. A escola ficou em sexto lugar, mas esse foi provavelmente o momento mais politizado da década de 1990 no Sambódromo carioca.
A ala dos sem-terra durante o desfile
O enredo Xingu - o clamor que vem da floresta, ao falar da reserva indígena no centro do Brasil, naturalmente trazia justas críticas às investidas do poder e das elites contra a demarcação de terras indígenas e os direitos das populações indígenas no Brasil. Era natural e fundamental que as críticas tocassem o agronegócio, citando "o monstro que roubou as terras dos seus filhos, devora as matas e seca os rios, tanta riqueza que a cobiça destruiu", como diz o samba. Diversas associações ligadas ao agronegócio se pronunciaram contra o desfile, e até senadores tentaram proibir e mesmo censurar de modo geral os desfiles, mas a crítica da Imperatriz era real e procedente, em um tema urgente e absurdo como o massacre às populações indígenas brasileiras.
A Ala do agrotóxico no desfile da Imperatriz de 2017
Seja qual for o resultado do desfile das escolas desse ano, o grande destaque popular já foi escolhido, e vem de uma escola pequena: depois de um desfile trágico em 2017 (em que um acidente com uma de suas alegorias provocou a morte da radialista Liza Carioca), a Paraíso de Tuiuti veio para 2018 com um enredo contundente: Meu deus, meu deus, está extinta a escravidão?, mostrando como a escravidão e seus efeitos permanecem até hoje. Além de uma sucessão de carteiras de trabalho desfilando, como crítica à impopulares reformas trabalhista e da previdência do atual governo, no final do desfile o presidente Michel Temer veio caracterizado como um "vampiro neo-liberalista" - como o vampiro da escravidão moderna. Um momento histórico e icônico, totalmente alinhado com as atuais demandas e opiniões da população, que aplaudiu e cantou junto.
Outro momento que entrou para a iconografia crítica dos carnavais nesse ano foi a ala dos "Manifantoches", também no desfile da Paraíso do Tuiuti. Fantasiados com patos como o imenso pato de borracha da FIESP, e camisas aludindo ao verde e amarelo da CBF, com panelas nas mãos (todos símbolos das manifestações que pressionaram pelo impeachment da presidente Dilma), mas com grandes mãos sobre os foliões, manipulando as cordas que os conduziam como fantoches, a Tuiuti criou uma perfeita alegoria da herança que tais manifestações hoje oferecem. As mãos possivelmente simbolizavam a grande mídia, as elites, e com isso a escola ofereceu ao mesmo tempo o tipo de metáfora e leitura precisa que as artes podem oferecer, e um corajoso gesto que entrou para os anais políticos dos carnavais.
Como pode se ver, 2018 já se tornou um dos mais politizados desfiles do carnaval carioca. Beija-Flor e Salgueiro, além da Tuiuti, também se valeram da política para atravessar a Sapucaí. Mas o outro destaque das duas noites foi mesmo a Mangueira, que destilou críticas já desde o enredo - Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco, sobre o corte de verbas para as escolas de samba decretado pelo prefeito Marcelo Crivella. Bispo evangélico, Crivella vem sendo muito criticado por sua postura em relação à maior festa popular não só do Rio, mas do país (não por acaso, o prefeito foi para a Europa durante o carnaval desse ano). Crivella apareceu no desfile como um boneco de Judas, com um tripé em que se lia: "Prefeito, pecado é não brincar o carnaval!". No carro, remetendo ao famoso desfile de Joãosinho Trinta, novamente um Cristo coberto, com a frase: "Olhai por nós! O prefeito não sabe o que faz". A plateia entoou o coro de "Fora Crivella", confirmando que o desfile-protesto da Mangueira agradou e tocou em pontos importantes ao povo.