As ruas como contadoras das histórias do povo. Heróis, personalidades, líderes… outros, aparentemente nem tanto. Partes dos 291 anos de Fortaleza em mais de 9 mil vias. Ruas de homenagem, travessas de ego, avenidas da saudade alheia. Motivados e estimulados pela curiosidade elementar, Márlio Falcão e o filho, Manoel, buscaram expandir a resposta ao "onde estou".
Aos 72 anos, Márlio, agrônomo aposentado, não pôde participar da conversa; cuidava da esposa Maria. O filho Manoel, advogado, pesquisador e atual responsável pelo site do Dicionário de Ruas de Fortaleza, detalha a iniciativa pioneira, que reúne o significado de (quase) todas as vias da Capital.
Curiosidades, belezas e dilemas da toponímia urbana em destaque. Esta Aguanambi.282 marca o começo da cobertura do Grupo de Comunicação O POVO sobre o aniversário de Fortaleza, comemorado nesta quinta-feira, 13.O POVO - Antes de 2014, quando o site foi lançado, o que havia de material sobre as vias de Fortaleza?
Manoel Falcão - Um calhamaço de cerca de duas mil páginas. A intenção inicial era (lançar) um livro, mas nós tivemos seríssimas dificuldades por conta do volume. Daí surgiu a ideia do site, que está disponível à população há quatro anos. Agora, a gente tenta torná-lo mais interativo e explorar o potencial das redes sociais, algo que a gente só começou há um mês.OP - Que histórias as placas de ruas nos contam?
Manoel Falcão - A toponímia revela determinadas estruturas sociais. Seus métodos, se bem aplicados, mostram fatos relevantes. Existe uma história a ser contada, uma memória a ser resgatada. É isso que a gente percebe. (O poeta) Mário de Andrade disse, "Na rua Aurora eu nasci / Na aurora da minha vida / E numa aurora cresci. [...] Nesta rua Lopes Chaves / Envelheço, e envergonhado / Nem sei quem foi Lopes Chaves". Este tipo de inquietação ainda está na cabeça das pessoas. Fornecer uma maneira de informar é uma das coisas mais interessantes.OP - O que deu início ao levantamento?
Manoel Falcão - Mera curiosidade intelectual. Meu pai já havia escrito livros sobre toponímia municipal e se viu curioso por toponímia urbana. Por que a rua tal se chama assim? Quem foi fulano? A gente decidiu estudar e expor o trabalho para a sociedade. Meu pai coordenou muitos censos no IBGE e a metodologia do órgão é exemplar. O método de coleta e checagem de dados foi importado de lá para os levantamentos (sobre ruas). A gente não tem interesse algum em dar finalidade comercial para o site. São 15 anos de pesquisa e o site está no ar há quatro anos. Nossa intenção é resgatar a memória coletiva da Cidade, a história por trás de cada placa de rua. O banco de dados é aberto, com acesso gratuito. Difícil não é isso (disponibilizar o conteúdo). Difícil é pesquisar, contatar familiares, buscar informações remotas, percorrer ruas do cemitério São João Batista, para encontrar pistas sobre quem foi aquele cidadão, por exemplo.OP - Mesmo assim, existem ruas não mapeadas no dicionário?
Manoel Falcão - Esse é um trabalho que não tem fim enquanto a Cidade crescer. O dicionário procurou dar conta do que foi possível nos últimos 15 anos, na Cidade inteira, mas não conseguiu abranger todas as ruas. Na prática, é uma tarefa impossível. Mas a interatividade nos auxilia, porque a comunidade, líderes comunitários, podem ajudar com informações, principalmente com denominações de impacto apenas local. O dicionário se preocupou em procurar a história dos anônimos que batizam as ruas e a gente se deparou com histórias belíssimas e, outras, curiosas.OP - Por exemplo...
Manoel Falcão - Nossa pesquisa chegou a identificar um reflexo cultural, a incapacidade de distinguir o público do privado. São pelo menos 12 guetos em Fortaleza, em diversos bairros — regiões que estiveram, durante muito tempo, sob o domínio de uma determinada família, onde essas pessoas nomeiam boa parte das ruas. Além disso, temos uma infinidade de ruas com nomes de santos, cidades do Interior e personalidades que, pouco ou nada fizeram aqui e, certamente, nem conheciam a Cidade, como Lady Laura, mãe de Roberto Carlos, José Mojica e o Zé do Caixão. Isso nos leva à reflexão sobre como esse procedimento está sendo feito. Esta inconsistência e os exageros poderiam ser perfeitamente evitados.OP - Seu trabalho como advogado auxiliou no projeto?
Manoel Falcão - Temos uma vertente de cunho histórico, mas também temos face jurídica: saber os parâmetros legais para nomear as ruas, como eles são utilizados e como podem ser melhorados. O site, feito com o engenheiro de computação Flávio Carneiro, tem proposta de trabalho, de aprimoramento à legislação vigente: torná-la não só eficaz, mas aplicá-la da melhor maneira. Com a base de dados levantada, é possível corrigir equívocos como a multiplicidade de ruas. Tem personalidades aqui que nomeiam até seis vias, como Senador Carlos Jereissati (nos bairros Serrinha, Praia do Futuro, Papicu, Jardim das Oliveiras, Serrinha e Parque Araxá). Isso causa transtornos, como falhas em aplicativos de localização, além da banalização da homenagem.OP - Qual a importância de se obedecer essa legislação?
Manoel Falcão - Eu vejo falarem de planejamento urbano, intervenções, reordenamentos de barracas da Praia do Futuro e da rua José Avelino, mas a gente não consegue instrumentalizar sequer o básico: designar uma rua, que tem a ver com a questão mais elementar de quem circula na Cidade, o autorreferenciamento, o "onde eu estou?". Outras questões são ligadas ao registro imobiliário, prejudicado com a mudança incorreta do nome das ruas, uma revisão cega que também fere a memória coletiva e a identidade comunitária. A cidade é um labirinto. Muito se fala de mobilidade urbana, de incentivo a certos modais de transporte. O modal essencial é andar a pé. Para isso, tem que ter segurança, calçada desobstruída e marcos referenciais para os deslocamentos, como as placas de rua. A falta delas traz transtornos para a locomoção e comunicação, por exemplo. A questão do endereçamento merece uma discussão maior em Fortaleza.Multimídia
Dicionário de Ruas de Fortaleza
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