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O ACIDENTE DO HIDROAVIÃO JUNKERS D218 EM ARACATI

Publicada em 11/03/24 as 16:51h por José Nilton Fernandes - 118 visualizações

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 (Foto: Reprodução Google)

Fato, é definido como algo cuja existência não pode ser posta em dúvida. A grande questão é separar-se aquilo que é fato do que é mentira. Não é tarefa fácil, pois, uma mentira dita mil vezes, torna-se verdade, segundo Joseph Goebbels. Os livros de História não estão isentos dessa assertiva. O que hoje aceitamos como verdade, poderá ser grande mentira, amanhã, e em sentido inverso, produto de pesquisa da ciência. O mundo vive em constante transformação. A única coisa que não muda é a constante mudança que a vida nos impõe.


As crianças acreditam em tudo aquilo que os mais velhos dizem. Creio que em razão de nascerem puras, isentas da desordem dos nossos sentidos, oriunda de contatos com pessoas já contaminadas por violações morais e vicissitudes da vida.


No tempo em que eu era menino, em Aracati, costumava fazer parte das “conversas de calçada”, onde adultos e crianças se postavam logo após o jantar. Certa vez, apareceu um desconhecido, na companhia de Pedro Viola. Dizia-se aracatiense, morando em Fortaleza. Segundo ele, num certo domingo do ano 1923, ocorreu um acidente com um hidroavião Junkers D218, no qual morreram os pilotos alemães Werner Junkers e Hermann Mueller. Esses pilotos tentavam realizar a difícil tarefa de chegar ao Rio de Janeiro, saindo de Cuba. Partiram em duas aeronaves. Entretanto, ocorreu um desastre em uma delas, ainda na Ilha de Marajó (a maior ilha fluviomarinha do mundo, no Estado do Pará), danificando-a por completo, causando a morte de Willy Thill, o terceiro piloto, também alemão.


No percurso para o Rio de Janeiro, havendo necessidade de abastecer o avião, sobrevoaram, antes disso, a cidade de Aracati, para espanto e satisfação de todos. Por volta das 13:30h, finalmente, amerissaram com tranquilidade nas águas do Rio Jaguaribe. As mulheres aracatienses - meninas, moças, casadas - e até mesmo alguns indivíduos supostamente viris – se encantaram com a beleza do jovem e milionário piloto Werner Junkers. Enquanto a aeronave estava sendo abastecida, os alemães foram apresentados a alguns empresários, para, depois, retomarem a viagem. Numerosa multidão amontoou-se à margem direita do Rio Jaguaribe para assistir à decolagem. Diversas mulheres, e até mesmo um bando de rapazes choravam em profusão, nunca visto, com lenços brancos nas mãos. O relógio da Matriz marcava 15:30 minutos.


Após deslizar sobre as águas, o aparelho eleva-se em grande estilo. Ainda a pouca altura, o piloto Werner decide agradecer a gentileza recebida, realizando, para isso, manobra muito arriscada. Desconhecia o piloto que, nesse período, vez em quando, costuma formar-se um pé de vento vindo do litoral, o qual varre com grande força tudo o que encontra pelo caminho. Esse fenômeno, tão benéfico aos moradores, aliviando o calor, foi a causa para que o avião se chocasse contra as barreiras do rio, explodindo imediatamente. Morreram os dois pilotos, carbonizados...


Nesse exato momento, na Rua Santos Dumont, falece a parteira Julita, aos 98 anos, que vivia a enganar a morte. Recebera a extrema-unção várias vezes, mas, logo em seguida, dizia para os filhos: “Não quero morrer hoje”! Nesse dia, entretanto, ela morreu, finalmente, porque quis, segundo dizem, já que combinara com a morte.


Não havia, àquela época, urna funerária pronta, em Aracati. Nem o marceneiro especializado aceitava encomenda, naquele dia, já que, a pedido das autoridades, cuidava exclusivamente da confecção dos caixões para empacotar os alemães sinistrados. Nesse caso, o jeito foi valer-se do horripilante caixão negro, com flores brancas, reservado aos pobres e indigentes, existente nos fundos da Igreja Matriz, já sem tampa. Usado por anos a fio, encharcou-se do cheiro da morte..

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Os féretros, ainda que não se tenha combinado, saíram todos às 9 horas do dia seguinte. O esquife dos alemães partiu primeiro, seguido por mais de sete mil pessoas, sob o agudo badalar do sino-mor da Igreja Matriz. Chorava-se como quem perdeu familiar. Aqueles que estavam no final do séquito dos pilotos, podiam ver, a custo, o cortejo da pobre Julita se aproximando, composto apenas por seus sete filhos, pequeno exército de abandonados. Logo ela, que em vida tanto se dedicara no difícil ofício de assistir parturientes. Os filhos de Julita entraram cabisbaixos no cemitério, caminhando no sentido norte, desviando-se de túmulos e cruzes caídas, invisíveis aos seguidores dos defuntos alemães. Os sete filhos da velhinha choravam copiosamente, para espanto de um bando de passarinhos empoleirados e mudos, a soluçar de dor pela parteira, consoante voz corrente.


À falta de coveiros - ocupados com o que sobrara dos estrangeiros - os filhos de Julita foram obrigados, eles próprios, a cavar a sepultura da mãe. Nesse instante, imperceptível aos humanos, brotou das entranhas da terra o óleo da revolta, misturando-se ao oceano lacrimoso dos enlutados da anciã, formando um todo plúmbeo, composto por raiva, tristeza e desejo de vingança. Em uníssono, juraram desforra, sem revelar, todavia, detalhes da mesma. Até mesmo diante do sacerdote, na hora da "Confissão", passavam por cima desse pecado, deixando de mencioná-lo.

No ano seguinte, fim de março para abril de 1924, ocorreu uma das maiores enchentes em Aracati. A cidade ficou submersa. O cemitério, construído sobre várzea, praticamente desapareceu, à exceção dos suntuosos mausoléus em mármore, como o dos alemães, mesmo assim com grandes avarias. A municipalidade reedificou prontamente apenas os túmulos pertencentes a políticos e a mortos da elite aracatiense, sem esquecer o dos pilotos carbonizados. Os outros, covas simples, de singela gente, não foram alvo de desvelo, permanecendo tal qual a enchente os deixara: cruzes caídas, inidentificáveis, desmoronados, enlameados, com ossadas expostas, a maioria, além disso, cobertos por mato.


O mausoléu dos pilotos, todavia, foi transformado em verdadeira obra de arte. Restava tão somente trocar sua portinhola, levada pela enchente. Os filhos de Julita souberam disso. Chegara o momento da vindita, disseram. Num desses dias, minutos antes da meia-noite, sob nuvens escuras, pularam o muro do cemitério. Com alguma dificuldade, encontraram a cova da mãe, retirando de lá seus despojos. Em seguida, numa padiola, levaram a caveira da mãe até o mausoléu dos alemães, depositando-a lá, em substituição às ossadas dos pilotos. Logo depois, levaram as ossadas dos germânicos e as lançaram ao chão, ao léu, ao lado de centenas outras, dentro de vigoroso mato.


Ainda hoje, notadamente Dia de Finados, o túmulo dos alemães é o mais visitado, sem saber grande parte dos aracatienses e de alguns turistas que os restos mortais de dona Julita, a parteira, estão lá depositados.


Será que o narrador dessa história, o desconhecido amigo de Pedro Viola, estaria falando a verdade, em relação à façanha dos filhos de Julita? A história em si, ou seja, o desastre do hidroavião, é fato!

 

Fortaleza, 07 de março de 2024

José Nilton Fernandes

 




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