(Foto: Reprodução Google )
Durante o tempo em que morei em Aracati, a Rua Santos Dumont era o meu mundo, meu centro de tudo, onde exercia supremo domínio, andando à solta, por acreditar que tudo lá podia fazer. Quando vim para Fortaleza, deixei lá as minhas boas recordações, pedaço enorme da minha vida. Logradouro simples, de gente honrada, temente a Deus, embora minguada de recursos materiais. É espaço de rica cultura, folclore, e berço de valorosos personagens que marcaram e ainda marcam a história popular aracatiense. Sem menoscabar a importância da minha rua, gostava também de passear e me divertir pela Rua Grande, região, antigamente, de maioria nobre e de pessoas supostamente mais abastadas, condições adquiridas por herança, com raríssimas exceções. Lá, tinha também alguns amigos. Hoje, na longura dessa época, avalio o quanto era feliz.
Certa vez, em visita ao meu Aracati, pus-me a apreciar a Rua Grande, de um posto de observação encravado na praça Dr. Leite. Lembrei-me, na ocasião, que a composição “Baião de Aracati”, de autoria do conterrâneo Geraldo Figueiredo, interpretada por Ary Lobo, falava de um entorto dessa rua: “Aracati é uma cidade compridinha/Mais torta que nem a linha/Que a gente joga no chão... Há, de fato, percebido por poucos, um desvio no curso dessa via pública, como que afastando o padrão retilíneo antes projetado. Esse entorto se apresenta mais visível nas imediações do prédio que abrigou o Cine Moderno, por décadas, hoje Teatro Francisca Clotilde.
Isso me intrigou, sem que ainda tenha conseguido explicação plausível da origem desse fenômeno. Sempre me auxilio dos vastos conhecimentos históricos do amigo Antero Pereira Filho, morador da Rua Grande. Segundo ele, pode ter havido incúria do “arruador”, funcionário público da Câmara de Vereadores de Aracati, ao tempo do Brasil Colônia, encarregado de fiscalizar e determinar o local dos prédios a serem construídos. Se não foi descuido nos negócios públicos, foi incompetência, pontoou Antero Pereira. Há outra versão, porém, de menor lógica, segundo ainda o mencionado historiador: que o traçado da rua foi projetado para seguir os meandros do Rio Jaguaribe. Acho pouco provável, associando-me ao pensamento de Anterinho.
Braz Quintão foi o “arruador” mais célebre do Aracati, em que pese os embaraços cometidos. A Rua Grande, entretanto, deve-lhe reverências. Sua obra mais controversa, como arruador, foi a autorização que exarou para a construção da Igreja dos Prazeres, em 28 de junho de 1796. Tomou por base o alinhamento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, já existente. Deu no que deu: Não entortou a dita rua, é bem verdade, mas, conseguiu façanha pior: fechar, ao sul, definitivamente, a Rua do Piolho (atual Rua Cel. Pompeu). Ressalta Dr. Antero que os portugueses elaboravam projetos bem concebidos, não lhes cabendo culpa. O problema, resume-se nas trapalhices de Braz Quintão, personagem misterioso, difícil de ser compreendido.
Navegando nesse oceano de incertezas, resolvi dar asas ao meu pensamento, de modo que ele, possuidor de atributos fantasiosos, pudesse encontrar resposta para esse imbróglio. O resultado apresentado é que pode ter havido intenção premeditada de entortar o que retilineamente havia sido planejado, com o intuito sórdido de afastar nobres e ricos dos aspirantes a ricos, mais ao norte dessa rua.
A história está repleta de casos absurdos, e isso é fato. Em defesa desse argumento, vale lembrar que o processo de aldeamento de Aracati nasceu a partir do lado norte, onde os primeiros moradores se estabeleceram - pescadores, embarcadiços e agricultores. A Rua Grande, escudado nessa lógica, é a continuação, pois, da Infunca, queira ou não queira o povo da Rua Grande. Os portugueses aportaram em Aracati para explorar as atividades relacionadas ao charque a contar do século XVIII, quando, então, começaram a construir sobrados a iniciar pelo lado sul da cidade, em direção ao norte da mesma. É factível que a opulência os tenha estimulado a assumir atitudes prepotentes ou de desprezo em relação ao “povo lá de baixo”. Meu pensamento parece ter razão.
Fortaleza, 28 de fevereiro de 2024
José Nilton Fernandes