Quando passo defronte à Igreja Matriz de Aracati, tenho a sensação de ligar-me ao meu passado distante, tamanha a emoção que me invade, certamente por haverem ocorrido nesse espaço sagrado grandes acontecimentos que marcaram a minha vida, tais como batismo e crisma, principalmente esta, ainda vagueando fortemente na caixa de minhas recordações. Foi nesse excelso recinto que recebi os primeiros rudimentos da doutrina católica. Deixo escapar da memória, por conveniência e respeito, a pedagogia sádica do catecismo de então, sombras de teorias medievais ainda em uso àquela época, onde se falava mais do demônio que em Deus, ministrada por jovens catequistas de bons propósitos, beirando a ingenuidade, entretanto, as quais ora as reverencio, demonstração cabal de eterna gratidão.
Mesmo à distância, no silêncio da noite, algumas questões sobre a história e a origem da Matriz de Aracati ainda me intrigam. É fato, consoante documentos existentes, que o primeiro prédio, surgido em 1714, era “coberto com palha, com frente de tijolo e paredes de taipa”, denominado Casa de Oração, consagrado à Nossa Senhora do Rosário do Arraial de São José do Porto de Barcos do Rio Jaguaribe, posteriormente Villa de Santa Cruz de Aracaty. A iniciativa para a construção dessa igreja partiu de charqueadores, de embarcadiços e negociantes envolvidos com essa atividade, posto que o Aracati já despontava, à época, de grande influência, por ser a região mais desenvolvida comercialmente do Ceará, fazendo jus, portanto, a uma edificação dessa monta.
Antes de 1714, quando não existia a igreja Matriz, seu entorno era formado por terras alagadas, cobertas por frondosas carnaubeiras e marizeiras, em estado agreste. Acrescente-se, que a singela capela foi praticamente devorada por cupins e formigas, tendo de ser reconstruída em 1719. O material empregado, quando não vinha da Bahia, como telhas, era oriundo de Portugal, do mesmo modo, sinos e imagens. O prédio atual, com alguns reparos, ao longo do tempo, teve sua construção iniciada em 1745, e, finalmente, concluída em 1785.
Desperta-me curiosidade os detalhes de tal edificação, supostamente robusta. Afirmam alguns historiadores que as paredes foram erguidas com tijolo grande de argila, seco ou cozido ao sol, às vezes acrescido de palha ou capim, para torná-lo mais resistente, chamado adobe, um dos mais antigos materiais de construção utilizado no mundo. Há ainda quem sustente que se juntava a esse aglomerado melaço de cana, transformando a massa resultante em substância tão compacta quanto a do cimento. Seu emprego, é voz corrente, presentemente, era vantajoso, tendo em vista que regulava a umidade do ambiente, proporcionando maior conforto térmico.
A maior dificuldade, entretanto, penso, diz respeito à colocação dos sinos nas torres, quando não havia, então, motores elétricos nem elevadores. Como teria, então, acontecido? Na ausência de fatos, a dúvida me leva a deduzir que os sinos eram alçados às torres por meio de grossas cordas de sisal, puxadas por vigorosos bois. De qualquer sorte, tratava-se de operação engenhosa e deveras arriscada. Contudo, não há registros de acidentes na obra, nem de onde veio o pessoal utilizado nessa construção. Considerando que certas coisas são vistas pelos sentidos e pela imaginação, é admissível atribuir que a mão-de-obra não qualificada tenha sido composta por negros e indígenas, do próprio Aracati, sob a supervisão de mestre de obra trazido da Bahia, Recife ou Portugal.
Seja lá o que tenha acontecido, é inegável a beleza arquitetônica desse prédio, notadamente as artes internas, bem-querer de grande expressão dos aracatienses, em todos os tempos, além de importante vestígio do nascimento e desenvolvimento de nossa terra querida.
Fortaleza, 15 de fevereiro de 2024
José Nilton Fernandes